Seleta do Acervo - parte 1

Seleta do Acervo - parte 1

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Réstia de luz

Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão barata (mas limpa e asseada )
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Quem havia de resistir?

Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou ate o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras puídas de palhinha; e a
bacia de louça cor-de-rosa em que te
lavavas, depois, ocultando teu gesto,
constrangida, para não te banalizares —
tua aura de deusa profanada por
essa intimidade prosaica.

Quanta vez, este teu recato ante a
promiscuidade me excitou, te enlacei
por detrás e te trouxe de volta ao
tumulto da cama! Tu sempre resistias.
Você é louco, menino? Ele chega cedo
do trabalho. Olhe aquela réstia de luz
na persiana como engatinha sorrateira
a caminho da noite. Mas resistias um
resistir indeciso, querendo mesmo te
entregares, e desta vez, com mais volúpia.

É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito recatado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num
desses dias em que sentimos a terra
tremer embaixo de nós e até pensamos
que era o trem.

Lá estava a réstia de
luz que engatinhava pela persiana,
prestes a engendrar a noite. Não sei
se foi ele, se fui eu ou o que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.

Faz bastante tempo que nos vimos. Foi
no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa,
conversar. Era um final de tarde. Tinhas
pressa. O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, em pé, diga.

Eu tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor; cerzir
retalhos do passado como uma colcha de
delírio. Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.

Com um ar preocupado, consultaste teu
relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era
outra pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.


Um comentário:

  1. Márcia: já postei "Réstia de Luz" pelo menos três vezes no Leitora. Ildásio dedicou o poema a mim porque ouvi todas as modificações que ele fez, logo após cada feitura. Tenho, inclusive, em papel as versões do poema. Ele me enviou para que eu guardasse. É uma honra para mim, sempre foi.

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