Seleta do Acervo - parte 1

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Poema Desnatal

Será Natal também em Kabul
quando chegar o dia. Mas pouco
importa. Será Natal. A fome e a
miséria prosseguirão o seu presépio.
Não importa. Será Natal. A solidão
estará solitariamente só e solitária.
A solidão estará tudo menos solidária.
Mas será Natal.

No Brasil, em Portugal.
Na Groenlândia, na Tailândia.
Na Nigéria, na Libéria.
Na Desunião Soviética.
Na paranóia norte-americana.
Na prosperidade germânica.
Na voracidade nipônica.
No imperativo britânico.
No desterror do golfo.
E no horror supremo do lugar onde o menino nasceu —

Pipocam no ar os petardos,
rasgam céus outros cometas,
matracam metralhadoras,
balas assobiam.

E em cada milímetro do solo sagrado
explode uma bomba
em comemoração pelos mortos de Belém.

Em verdade não ficou pedra sobre pedra,
nem há de ficar. Está escrito.

Quando os peixes se dispersam pelo mar,
dificilmente nadam para trás.

A roda roda para trás e eis a hora do Aquário.
Do Espírito Santo. Ruáh. De todas as
confluências. E será sempre Natal
em todas as partes deste aprazível
planeta, mesmo naquelas em que
os meninos de Liverpool são mais conhecidos
que o menino de Nazaré.

Será Natal. Nascerá um menino.
E nele, por ele, com ele nascerão
todos os meninos que houve, há e haverá
de nascer. Nascerá um menino,
determinação segura de prosseguir.
Ninguém sabe. Nem para onde.
Nasceu, viu e venceu.

Venceu o tigre dente de sabre.
Venceu o gelo, a inundação.
O ciclone, o terremoto, o vulcão.
Venceu os ares, os mares, a noite.
Venceu o outro. Venceu até a si mesmo
(sem constância, todavia). Mas lutou
contra suas certezas, essas mesmas
certezas de que é feita sua ignorância,
seu medo. E venceu-as. Venceu o medo
quando se fez imperioso e necessário.

Veio de longe, do escuro, esse menino,
essa menina a lhe enxugar os olhos. A
lhe dizer o que ninguém sabe nem pode
dizer. A lhe dar o colo, o sexo, o útero
benfazejo, o seio farto, e a palmada
na hora certa da traquinagem errada.

Menino e menina os criou. E nascem
todos os dias em um Natal cotidiano.
Nascem, vêem e vencem.
Em mais uma etapa da aventura que
começou quando, atraído pela lua,
um ser emergiu do mar e rastejou pela praia,
atraído pela lua, périplo pelas estrelas
de meninos e meninas
a  nascer todos os dias
em ininterruptos Natais. Amém.


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