Seleta do Acervo - parte 1

Seleta do Acervo - parte 1

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Ode Estática

Olha, Denise, se tu fores ao passado,
anos quarenta, lá no interior,
haverás de estar comigo e contigo
naquele colóquio que jamais esqueço.
Se bem mereço, estaremos juntos no quintal.
Lembras-te da hera no muro alto
ao pé do qual brincávamos em horas preguiçosas?
Dos canteiros de dálias, chapéus de couro
e margaridas amarelas? As sombras da tarde,
obedecendo aos telhados e cornijas,
traçavam formas imprevistas no cimento —
tu mostravas a mim esses desenhos
que descrevias em contornos de intensas fantasias.
Como as nuvens redondas num céu sempre
azul de sertão. O mundo era calmo.
O tempo lento. Lembro-me do vento,
açoitando as folhas pequenas de um pé de sapoti.
Lembras-te também? Vejo tudo como numa fotografia.
Vês? Tudo arrumado como a fazer pose
para a câmara de nossos mais recônditos refluxos,
olhos sutis dó nosso sentimento
(alcançam muito mais que um telescópio).
Prefiro crer que lembres. Não sei a quantas andas,
talvez casada com o Dr. Fulano de Tal, rica, gorda,
quiçá adúltera; ou tocando piano a tarde toda
como uma santa. Não importa. Importa é que
em alguma célula de teu cérebro essas coisas
haverão de estar arquivadas e por um motivo
qualquer serão tiradas do inconsciente,
nem que eu tenha de ficar famoso e meus versos
de correr o mundo. Lembrarás então — como
eu me lembro — daquele menino tímido:
tu me dizias que eu era bonito; até acariciavas
meu cabelo mas minha timidez não se dissipava.
O primeiro dia em que nos beijamos,
escondidos atrás do tronco bojudo de uma mangueira,
foste, tu, Denise, que tomaste a iniciativa,
premindo teus lábios contra os meus,
nada mais que um leve roçar de peles curiosas.
E tanto afligiu-me a consciência de um ato pecaminoso
que Domingo na Igreja da Matriz tudo contei ao padre.
Tu deves-te recordar pois no mesmo dia, o teu recato
impediu-te de ir ao confessionário — assim disseste
a mim com um sorriso sutil — como eram os teus.
Mas nosso beijo apressado abriu caminho
a caravelas nos mares dos sentidos, descobertas
de cheiros e de gostos; de tatos e contatos; de visões.
Tudo escondido. Lembras? Do esquisito sabor
de cumplicidade e de segredo? O mundo
ignorante derrotado num simples trocar de olhos.
tua mãe na sala tricotando ingenuidade
e nós dois na sala de costura atrás das cortinas,
os corações palpitando de medo e de emoção.
Tu, mais velha do que eu um pouco,
incentivavas meus avanços nos territórios secretos,
onde se esconde um cobiçado tesouro, jóias
de nome estranho; e correspondias com carícias
que eu nunca imaginara. Mais do que eu,
tu querias tudo, todo o encanto que esse esconso
universo a nós dois ofertava. Não temias
os temores que temem as mulheres tementes.
Desejavas todos os mistérios e surpresas
que colhíamos na penumbra azulada daquela
sala de costura. O primeiro dia em que te vi sem roupa
foi tão solene que até hoje nunca digo nua.
Eu me lembro. Era segunda-feira. A tarde descambava.
Nós dois na sala de costura. Tua mãe cochilava.
Tu já beiravas os doze anos, onze tinha eu.
Não sei qual demônio de mim se apossou.
Pedi e me negaste, primeiro com pudor;
depois com esquivanças, rudezas e desdém;
nervoso, eu insisti, com rogos e com súplicas;
e pouco a pouco tu calaste, sem me responderes:
numa ousadia, da qual não suspeitava,
fui doce e vagarosamente mobilizando laços,
presilhas e botões — ela não resistiu, como
eu até esperava. Súbito fez-se o encanto — Sus — era
um fascínio; eu quis gritar, ela tapou-me a boca.
Ah, nesse dia começou uma era. Ah, nesse
dia eu descobri um mundo.
Desde os cumes pontiagudos dos teus seios,
às colinas arqueadas do teu dorso,
até as penugens macias de teu vale —
tudo banhado pelo azulado da penumbra
no ambiente lascivo da sala de costura.
Um verdadeiro quadro de Velásquez,
se Velásquez pintasse meninas nuas.
Se tu fores, pois, ao passado, minha Denise
de então, anos quarenta, do interior
que sempre falou mais alto em mim do que capital,
se tu fores lá como espero, renovas nossas juras
que já são eternas; abraça-me e me beija
detrás daquela mangueira; me leva pela mão à sala
de costura e permanece nua, cravada na distância
dos acidentes breves, dos odores doces,
na visão parada do teu corpo tenro
que é o corpo ausente em que te procuro
em todos os caminhos, pelo mundo todo,
em todas as mulheres.

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