Seleta do Acervo - parte 1

Seleta do Acervo - parte 1

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Mensagem do amigo António



Olá, Márcia.

Muito obrigado pelas lembranças do nosso saudoso Ildásio. Também eu lhe envio uma fota com o nosso amigo. Foi tirada em Lisboa, na Livraria Pó dos Livros, na tarde de 16 de Maio de 2009, dia em que (nessa mesma livraria) apresentei o livro "As Flores do Caos".
Na foto estão (da esquerda para a direita) Maria do Sameiro Barroso, Victor Oliveira Mateus, Luís Graça, António José Queiroz e Ildásio Tavares.

Abraços do
António José Queiroz

A FELICIDADE QUE TIVE NA VIDA (por Ildazio Júnior)

Fui bem nascido! Tive berço! Essas palavras poderiam até soar pedantes e arrogantes se não fossem para ilustrar o reconhecimento pelo norte, pela minha fonte e nascente chamada Ildazio Marques Tavares.

Ele nunca nos deu presentes materiais e quando os deu, sempre foram comédias, como o famoso caso das raquetes de tênis: onde ainda garotos doidos por jogar tênis e sem material legal no Brasil, ele de viagem marcada para Europa e devidamente feita sua encomenda, nos trouxe raquetes de tênis de mesa para nosso desespero e curtição de todos nossos colegas! A justificativa: Preferia carregar livros durante a viagem para nós do que, “porra de raquetes”! Ah, li as obras completas de Monteiro Lobato aos 10 anos! Machado de Assis, Gonçalves Dias, Jorge Amado, Os irmãos Grimm, fábulas de esopo e La Fontaine na adolescência, falei e pensei em inglês com 12, entre tantos outros, estes sim, grandes presentes!

Como esquecer a minha primeira suspensão no Antônio Vieira! Quinta série e um colega me disse no ônibus escolar que meu pai iria morrer de fome, pois era poeta! Nem discuti, parti para cima dele!Nesse mesmo dia o perguntei: “Pai, o que era ser intelectual?” Ele me disse, que era estudar, ler e acima de tudo ter o saber como a principal arma, o saber nos daria tudo! Mas e a grana? “Eu ia morrer de fome?” Ele riu e disse Tavares Jr., o saber lhe conduzirá a felicidade, mas você tem que ser competente!

Amante das artes e da cultura, um dos grandes artistas da maior geração que até hoje existiu na Bahia meu pai fez a minha infância e adolescência repletas de convívios para lá de maravilhosos! Jorge Amado, Carybé, Sante Scaldaferri, Carlos Bastos, Mário Cravo Filho e Neto, Antonio Carlos & Jocafi, Vinícius de Moraes, Raulzito e seus Panteras, Gil, Baden, Maria Creuza, Jair Rodrigues, Mãe Stella, Mãe Meninnha, Dom Thomaz Morton, João Ubaldo, Batatinha, Julio Medaglia, Belchior, Alcione, Paulinho da Viola, passaria uma dia citando!

Diversos cochilos nas poltronas dos teatros tentando entender quem eram Ibsen, Beckett, Camões, Pessoa, Goethe! Horas explicando uma poesia de Baudelaire e agente querendo se picar para jogar tênis e o maluco dizendo que agente não tinha jeito mesmo!

Desvendou-nos o candomblé, ao qual era profundo entendedor, colaborador e respeitador, nos dando sempre a certa visão sem folclore e sim como cultura!

Como disse meu irmão Gil em seu lindo texto, cruel em seus julgamentos (com ele mesmo inclusive!), enxergava a canastrice, o engodo, o ruim de longe e dizia sem nem pestanejar, doesse a quem doesse, “ISSO É UMA MERDA!” Não fechava com a mediocridade! Ele era valente, capoeirista de bimba, Lacrau!

Fui morar com ele de novo em 2000 e encontrei um Ildazio Tavares puto com uma Bahia que não crescia culturalmente, e segundo ele, tinha se desligado da “Bahia de merda”, se concentrava “na Bahia que restava!” Era muito mais reconhecido no Brasil e Mundo afora do por aqui! Mas ele já estava cagando a aquela altura pois sabia das suas referências e capacidades!

Como foram bons esses quase três anos! Quanto aprendizado! Quanta informação! Todo dia ia dormir ouvindo meu pai me contar histórias! A diáspora judia, a queda de Constantinopla, a mulher do General Potifar que de tanto desejar José e não ser correspondida o delatou como estrupador o fazendo ser preso, gerando a ira de Deus que jogou as pragas sobre o Egito, da deusa Circe que transformava os náufragos que chegavam a sua ilha em porcos por que todos se apaixonavam e faziam suas vontades, da música popular brasileira e seus festivais, enfim tudo para ele era motivo de uma aula!

Hoje com muita dor e sem sua direção artística, mas com sua energia sigo meu caminho carregando o nome dele! Agora é viver para honrar!
Que felicidade eu tive na minha vida!
JR.

Nossas caixas de guardados

Há alguns meses iniciamos o desenvolvimento deste blog. Como Ildásio era um tanto confuso com as questões eletrônicas, acabou perdendo a senha e o email do direcionamento dos comentários. Somente ontem consegui recuperar todos os dados para dar andamento ao nosso projeto de transformar o jornal impresso Correio da Poesia em jornal eletrônico. Com a sua partida, deixo que a natureza dê a este blog o tempo necessário para que se construa na medida da própria existência.

Ao longo dos últimos anos de convivência, fomos guardando poemas, fotografias, livros inéditos e recordações que considero de fundamental importância para a cultura baiana. São duas caixas cheias. Postarei aqui, somente as coisas que merecem deixar a caixa de guardados A, porque na B a gente só guardava o que considerávamos impublicável. "Nesta caixa (B) a gente guarda o que é pra ser epigramado, pra gente dar risada!", dizia.

Engraçado é que remexendo tudo, descobri em uma das caixas a senha que me deu acesso a este Correio da Poesia. Estava lá. No cantinho da caixa B.

Meu pai subiu no telhado, por Gil Vicente

Meu pai subiu no telhado. Sim, isso é uma paródia da famosa piada de português, povo que ele amava e que publicou seu último livro em vida. E parodio a piada porque a coisa que meu pai mais gostava no mundo era fazer piada e sei que ele riria muito (deve estar rindo, talvez) de um artigo sobre seu falecimento iniciado assim.

Meu pai subiu num telhado, mas num telhado bem alto de um palácio, de um zigurate, de uma sinagoga, de um barracão. Ele subiu em todos esses telhados e tantos outros da vasta cultura de um homem especial, talvez o único próximo a mim cujo título de gênio coubesse como a nenhum outro.
Ildásio Tavares nunca esteve nos holofotes como alguns de sua geração. Mas iluminou a cultura brasileira.

Se eu fosse desfilar o currículo de meu pai, precisaria escrever uns dez artigos. Livros, jornais, revistas, TV e google dão conta do recado. Entrementes, falar um pouco do quanto meu pai iluminou minha vida talvez seja uma metonímia do homem que ele tentou ser e em muitos momentos foi pro mundo.

Desde pequeno, bastava eu aparecer entusiasmado com alguma música, algum escritor, que ele logo me mostrava os defeitos. Foi um crítico feroz de todas as obras, a começar pela minha e, principalmente, pela dele. Como todo grande intelectual, via os defeitos e rachaduras, as falhas e fraquezas que o senso comum aplaudia e ignorava. E sofreu muito por isso. A grandeza oprime e a verdade dói. E era um grande que defendia verdades. Nem sempre as verdades, mas as suas verdades, e era muito íntegro com elas.

Dificilmente temos o que merecemos. Muitos são louvados em demasia, outros sofrem pela escassez de reconhecimento. Mas meu pai foi um lutador e um vencedor porque, a despeito da mediocridade opressora que tentava lhe anular, ele conseguiu galgar degraus que, se não o levaram ao merecido altar de gênio que era, ao menos lhe trouxeram momentos de alegria, como ao desfilar homenageado pela Nenê da Vila Matilde, em São Paulo, ou na comemoração de seus 70 anos, com momentos lindos como o de Gerônimo e Vevé cantando É d’Oxum em francês, na versão dele, ou o belo discurso de Jorge Portugal na entrega da Medalha Zumbi dos Palmares, etc, etc...

Tive o prazer de cochilar a manhã inteira no colégio depois de virar a noite vendo meu pai compor com Baden Powell. Tive a honra de, já exaurido, ter um poema em redondilha todo refeito ao lado dele quando eu tinha 7 anos de idade. Aprendi a fazer poesia, a reconhecer a beleza de muita coisa no mundo graças a meu pai. E o que levamos da vida é a beleza das coisas, a poesia dos momentos, das palavras, das cores e melodias.

Meu pai subiu num telhado, mas diferentemente da piada, ele não morreu. Ele está ali, em cima do telhado, olhando pra mim e pro mundo com olhos críticos. Eu sei que ele está lá olhando e pensando o quanto o mundo perdeu ao não reconhecer sua poesia e seu pensamento, e, nós poucos, de cá, pensando o quanto parte do mundo e eu ganhamos ao reconhecer sua poesia e seu pensamento.

Alguns poucos olharão pro telhado, em busca de meu pai. Ele vai estar lá, como todo mestre. Pois um mestre só se torna mestre mesmo quando o que ele pode oferecer deixa de ser ele e passa a ser a gente. E meu pai está mais em mim do que em qualquer outro momento esteve.

Agora é o momento de começar a aprender quem eu sou. Aos poucos, por toda vida. Tentando buscar em mim a poesia e sabedoria do pai e do mestre. A tristeza aparece no momento em que não olhamos as coisas belas.

E não tem nada mais lindo, agora, do que ver meu pai de cima do telhado, olhando pra mim e torcendo pra eu seja um grande homem. Para que eu não deixe que a pobreza do mundo invada nossa alma.

Foi isso que ele me ensinou. E será isso que eu tentarei fazer minha vida inteira, porque agora a responsabilidade aumentou; meu pai subiu no telhado e estará de lá, olhando pra mim, e dizendo; “agora é com você. Já fiz minha parte e fiz muito bem”.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Micro entrevista com Ildásio Tavares

Fonte:  http://sopadepoesia.blogspot.com/2009/12/micro-entrevista-com-ildasio-tavares.html

2 poemas inéditos do poeta de Itapuã

GF – Na lírica moderna o poeta passou a cantar a própria poesia em oposição à realidade opressora do nosso tempo. Como você analisa tal fato?
IT
– Sempre foi assim. Contudo, em nossa época, o poeta sofre uma crise tão forte de identidade ante um sistema esmagador que, às vezes, cantar sabe a um grito no escuro.

GF – E o que, na sua ótica, justifica esse grito?
IT
– A total necessidade de expressão do indivíduo amordaçado pelo sistema.

GF – Você já afirmou que acha mais difícil criar um poema com versos livres que um poema dentro da métrica, por quê?
IT
– Por que a métrica te dá um parâmetro, uma referência fixa, um modelo estrutural para você preencher. Para o verso livre, você tem que criar este modelo estrutural. Enquanto para um você tem uma métrica geral pré-estabelecida para o outro você tem que criar uma métrica particular para cada poema. Muitos poetas quebram a cara aí porque pensam que o verso livre é anárquico ou prosaico. Não, você pode fazer arte do caos, mas não fazer caos da arte. O verso é livre, não caótico ou frouxo.

Dois poemas inéditos do autor
As anotações que o poeta faz abaixo de cada um dos seus poemas marcam a data em que o mesmo foi concebido, o local e a quantidade de vezes que sofreu interferência.

Canção da Menina na Avenida

De pé, nos tristes passeios,
noite fria na avenida,
espera mas não espera,
andando ao rastro da luz.

Há de vir, pelo silêncio,
uma oferenda do acaso,
deslindando a escuridão,
prêmio da perseverança.

Quieta, a menina fenece
na frieza da calçada.
Enquanto espera, apascenta
sua veloz esperança.




Canção de mar e vento
pra Kabá e pra Infraero

Ela caminha na praia
e nada traz sobre a pele
que um vestido transparente
sobre a nudez de escultura

O vento venta o vestido
que cola ao corpo e arredonda;
denunciando-lhe as formas,
seus abismos, suas ondas.

Quero-me amarrar no mastro
do meu saveiro, depressa,
antes que o canto comece
e não possa resistir.

Serenai, meus verdes mares
ao embalo do meu canto.
Petrificai-me, Ó meus olhos,
pelo que vejo e não vejo.

LITERATURA COMENTADA - JEQUIÉ (31/08/2009)

Fonte: http://www.souzaandrade.com.br/blog08/?m=200808

Sucesso absoluto a estréia do projeto Literatura Comentada, com o escritor Ildásio Tavares. Foi neste sábado, no Museu de Jequié. O evento, organizado por André Bonfim e Lucas Ribeiro, foi rico em conteúdo e teve uma platéia seleta. Uma excelente oportunidade de o jequieense manter um contato direto com importantes nomes da nossa literatura. Bela iniciativa.


 Na foto abaixo, Ildásio Tavares aparece ladeado dos organizadores do encontro, André e Lucas. À esquerda, o presidente da Academia de Letras de Jequié, Leonan Oliveira. A cobertura fotográfica ficou por conta do site Jequié Notícias.




Actio fructus

O que importa a um poema é escrevê-lo —
publicá-lo é perdê-lo — permitir
que os imbecis o pastem, qual  pérolas
ruminadas por suínos; ou que os ignorantes
críticos dos jornais detratem-no, mesmo quando
falam bem dele. E que os da Universidade torturem-no,
cozendo-o no tempero insosso da estupidez
científica, proferindo asneiras de muito maior
credibilidade. Quando escrevo um
poema, apenas o escrevo, sem cogitar
se vai ser bom ou se vai agradar a alguém.
Acaso o abacateiro preocupa-se com a
qualidade dos seus frutos, uns mais doces,
outros menos, uns maduros, outros não? Se
eu for poeta, darei poesia como o abacateiro
dá abacates. Se algum dia, atraído por meus
frutos, alguém quiser deles provar, que faça
bom proveito — goste ou não goste, a árvore
continuará a produzi-los, casca, polpa, e o
caroço que até se pode plantar — e sempre haverá
goiabas, tangerinas, cajás, umbus, maçãs e as
difíceis nectarinas, para quem goste do sabor
delas. O abacateiro continuara a dar abacates
e eu meus versos, sem jamais nos preocuparmos
com o destino que terão. Todavia, se meus poemas
forem publicados, não quero estar por perto para
vê-los maltratados pelos olhos dos porcos a
mastigar minhas pérolas, frutos que nasceram
de mim, sem que eu sequer quisesse.